Uma última conversa!

– Olá. Chega aí. Como vai você? Não sei quem és, mas conheço esta camiseta. Tudo bem?

– É, mais ou menos. E você, está bem?

– Claro que sim. Você que não está, percebo. Você está chorando?

-Um pouco, mas não leve isso em consideração. Eu quero falar contigo sobre… primeiro pedir desculpas. Cheguei bem em cima da hora. São quase meio dia e você está viajando as quatro e meia.

– Que nada. O tempo não existe e nós podemos resolver tudo agora mesmo. Sente aí. Não fique assustada, porque eu pretendo apenas ouvi-la. Pode começar.

– Bom, eu não sei como começar. Talvez eu tenha pensado muito de ontem pra cá e às vezes faço umas confusões. Enfim. Eu não concordo com a tua ida e queria muito que você ficasse. Vou me sentir um pouco sozinha, eu acho. Mas não é só isso, claro. Você está carregando contigo algumas coisas que são minhas também e…

– Como assim? Eu? Você não está bem mesmo.Estás me acusando do que?

– Você sabe. Não se faça de desentendido. Houve um tempo em que tudo era tão romântico. Os valores, sabe, eram muito diferentes. O importante era amar, ser uma pessoa honesta, viver dignamente, respeitar e divertir-se. Somente isso. Hoje está tudo tão difícil.

-É. Mas ainda não entendi…

-É que você fez parte deste tempo sabe. E nele você fez muita gente sorrir, vibrar, pular. Você é isso. Ou não é? É sim, porque eu carrego isso até hoje comigo. Estes valores, esta forma de viver, que naquele tempo era mais comum. Você me ajudou em boa parte a construir estes valores. E agora, indo embora, tenho medo de perde-los. Eles são meus.

– Ora, ora. É isso então. Não absolutamente. Isso não era meu, nem é teu. Isso é da vida. Não vou carregar tudo isso comigo. Acho que nem representei nada disso. Apenas fazia gols. Disto eu tenho saudades! Foi um bom tempo aquele!

– Só fazia gols? E você acha pouco isso? Quando eu estava lá na superior e tu saia do banco meu pai já dizia: “Levanta que vem gol aí“. A gente gritava, se abraçava… Como é bom o momento do gol. A gente esquece tudo. São instantes de muita adrenalina, de profunda alegria. Todos os grandes valores juntos. Satisfação.. . É sinal de vitória.

– Sim mas outros fazem gols. Não é mesmo?

– É, mas sei lá. Acho que o clima no Gigante, nos anos 70 era um pouco diferente. Por isso que eu sempre acho que você representa tudo. Aquela atmosfera muito legal de realmente todo mundo junto.Hoje estou triste. Tá certo que você já tinha avisado. Mas precisa ir mesmo?

– Olha. Não tô nem entendendo muito tudo isso. Mas acho que preciso ir sim. E depois, se o momento do gol representa e tem tanto valor pra você, se o gol pode traduzir um tempo em que a vida era mais vida, fique sabendo que eu fui engolido pelos anos que vieram depois. Alguém me disse, não sei bem quando, que foi por isso que preciso viajar agora.

– Você se arrepende?

– Não. Muita alegria eu dei.Você me disse isso agora mesmo. Não me arrependo, mas também queria ficar um pouco mais… sabe como é. Quis aproveitar tudo de uma só vez.

– Não quero que você fique triste como eu. Só quero que você não vá. Pode ser?

– Bom, não dá não.Se eu não for, vou deixar alguém me esperando.Mas volto logo. Prometo pra você que de um jeito ou de outro vou estar pulando e fazendo os gols que o INTER merece sempre. Pode ser assim?

– Já agora? Contra o Atlético Paranaense?

– Bah! Não sei se dá tempo.Vou tentar. Mas pensa que tudo que a vida tem de bom depende de ti E que se o gol é o máximo, cada um tem o seu próprio gol, marcado de formas diferentes.

Escurinho indo pra galera , fazendo seu povo feliz (Imagem: Clic RBS)

– É não vai adiantar né? Então vou indo. Já ocupei você por muito tempo e não posso atrasá-lo. Mas não quero ver tua despedida. Não poderia… Não esquece que você prometeu que vai continuar fazendo gols. Tá bom?

– Eu esquecer de fazer gols? Você tá é maluca.

Eu sou o Escurinho!

*Sai da capela Nossa Senhora das Vitórias sem olhar pra trás.12:30. Passei no portão seis. Olhei de longe aquela goleira. Há muito sinto saudades dele!

Adriana Paranhos/Porto Alegre – RIO GRANDE DO SUL
Conselheira do Sport Club Internacional e Fundadora da FFC (1º Torcida Organizada Feminina)

 

 

9 thoughts on “Uma última conversa!

  1. Passagem, travessia, descanso, foi para junto de Deus…Essas e outras definições ou idéias sobre a morte acompanham a existência de cada de nós ao longo das gerações. Quanto alguém que queremos bem parte antes de nós sentimos falta, tristeza, vazio, mas também agradecimento e orgulho por termos vivido ou conhecido aquela pessoa. Tenho certeza que todos temos uma enorme gratidão pelo Escurinho, mesmo aqueles que não viram de perto ou com a falta de clareza provocada pela idade pequena o Escurinho jogar. Sabemos que a história do INTERNACIONAL não começa e nem termina com o nosso nascimento ou partida, por isso respeitamos e agradecemos a todos que fizeram, fazem e ainda irão fazer parte deste belo livro de emoções.

  2. Puxa Adri, termino de ler este texto com os olhos marejados, entendi e senti a sua emoção. A conversa entre vocês foi exatamente essa,mas sigamos em frente e levamos conosco o sorriso de viver a vida em cada instante como o velho Escuro sempre carregou consigo e nos ensinou.

    Meus parabéns a você, maravilha de texto!

  3. No último ato de Rei Lear, só consta ‘Ele morreu’, nós não podemos ficar tristes pelo fato de morrer, e sim pelas coisas belas que deixamos em nossos atos passados e que agora ficam somente na lembrança. Ele morreu, somente Shakespeare em sua obra prima poderia ter essa sacada genial. No fim como Escurinho.

  4. Adriana:
    O belo texto de um diálogo que nós mortais não gostamos muito, mas faz parte da vida. O colorado Luis Carlos Machado descansa em paz com o dever cumprido com as tarefas que Deus havia lhe entregado, pois mesmo sendo um ídolo era um sujeito simples, sempre alegre, com ideais fortes e um amor verdadeiro pelo clube do seu coração. Ele se foi materialmente, mas sei que em espírito estará sempre do nosso lado ajudando a lotar as Arquibancadas do nosso Beira-Rio e quando jogarmos fora dos nossos domínios ele também estará lá do nosso lado.
    Dizem que os ídolos são eternos, então Escurinho vive entre nós.
    Cláudio R. Vidal

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